A partir do próximo dia 22, quando entrará em vigor a Lei 14.451/22, que alterou o Código Civil para modificar os quóruns de deliberação dos sócios das empresas de sociedade limitada, o Poder Judiciário brasileiro terá uma preocupação a mais nos julgamentos de questionamentos de deliberações anteriores à alteração da legislação, de acordo com especialistas no tema ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Segundo o texto da nova lei, qualquer modificação do contrato social da empresa, incorporação, fusão e dissolução da sociedade, ou a cessação do estado de liquidação, precisa ser aprovada por maioria simples, ou seja, 50% mais um dos votos. Antes, de acordo com o Código Civil de 2002, era necessário ter pelo menos 75% do capital social.

“A questão não será fácil, pois quando do julgamento de questionamento relativo a deliberações anteriores à alteração da legislação, o Judiciário deverá observar o prazo prescricional para o questionamento judicial de atas de reuniões de sócios e contratos de constituição e a legislação aplicável à época da deliberação” explica Mariana Nogueira, sócia da área de Direito Societário do escritório Leite Tosto e Barros.

Atualmente, há cerca de 20,1 milhões de empresas ativas em todo o território nacional, de acordo com dados do segundo quadrimestre deste ano. Desse total, 4,8 milhões são sociedades limitadas, conforme revela o Mapa das Empresas, uma plataforma digital do Ministério da Economia que fornece informações sobre o registro empresarial no Brasil.

Mais de 95% das sociedades limitadas brasileiras poderão ter sua situação afetada pelas novas medidas, antecipa Pedro Dominguez Chagas, sócio e coordenador da área de Direito Societário do escritório Silveiro Advogados. O que deverá resultar em muitas ações judiciais.

“Em nossa visão, a maior demanda no Poder Judiciário tende a ser de sócios minoritários de sociedades limitadas constituídas na vigência da legislação anterior, cujos contratos sociais remetiam à regra então vigente pelo Código Civil, sem enunciar literalmente os respectivos quóruns. Provavelmente esses sócios minoritários alegarão que a sua vontade de fazer parte da sociedade foi manifestada estando vinculada aos quóruns então previstos no Código Civil, sendo que tais quóruns (especialmente o de 75%) estabeleciam um direito de veto em determinadas matérias — notadamente nos casos que demandavam a alteração de contrato social”, analisa Eduardo Faglioni Ribas, da banca Mazutti Ribas Stern Sociedade de Advogados.

A alteração do quórum para modificações nas sociedades limitadas poderá esbarrar nas alegações dos sócios, sobretudo os minoritários, contra alterações no contrato social da empresa. “Com a mudança da legislação e a redução do quórum geral de aprovação de alterações ao contrato social nas sociedades limitadas, estes sócios minoritários alegarão que nunca manifestaram a vontade de fazer parte de tais sociedades com os novos quóruns, e poderão pleitear a manutenção dos quóruns originais para deliberação, mantendo-se, por exemplo, o direito de um sócio com 26% de obstar a alteração do contrato social”, diz Ribas.

Um argumento que poderá ser utilizado pelos sócios, inclusive, é o fato de que, para a transformação de um tipo societário (de limitada para sociedade anônima, por exemplo), a legislação exige unanimidade. De acordo com Ribas, “nesse caso de alteração dos quóruns indiretamente via Código Civil, na prática, ocorreu a redução de alguns direitos de veto de sócios minoritários sem que houvesse deliberação nesse sentido”.

Essa redução de direitos dos minoritários, porém, não ganha força na análise de Pedro Chagas. Para o advogado, as sociedades limitadas têm um balanço de poder que ele julga ser “muito interessante”, capaz de manter a equiparação entre os sócios, inclusive os minoritários. “Não vejo como perda de poder para os minoritários, mas uma correção. O controlador não vai poder mudar sozinho.”

Dois cenários

A mudança na lei coloca o Poder Judiciário diante de dois cenários: pode prevalecer uma vinculação genérica ao Código Civil, que, ao ser alterado, resulta em mudança automática dos quóruns a ele ligados; ou a vontade dos sócios, manifestada na vigência de lei revogada, pode estar vinculada ao texto outrora vigente e, portanto, tal disposição vincularia o contrato social à regra antiga, mesmo após a alteração legal, já que ele expressa o desejo dos sócios quando da assinatura do contrato social.

“Outro caminho possível aos sócios insatisfeitos com a mudança será o exercício do direito de retirada — sendo que o Poder Judiciário poderá ser demandado para discussões relativas à valoração das quotas do sócio retirante”, prevê Ribas.

De acordo com a advogada Carolina Martins, sócia da área de Direito Societário do escritório Leite Tosto e Barros, com a nova letra da lei as sociedades que anteriormente reproduziram os quóruns legais em seus contratos sociais permanecerão vinculadas aos quóruns qualificados, mais rígidos, já que foram adotados no bojo da sociedade e precisarão ser respeitados, independentemente da alteração da lei.

“Nesse sentido, mesmo se houver intenção de parte dos sócios de adotar o novo quórum legal, estes estarão obrigados a deliberar sobre ele de acordo com o quórum qualificado estabelecido no seu contrato social, o que pode dificultar a sua reforma.”

Para o Judiciário, segundo Mariana Nogueira, a questão é relativamente simples, já que as regras de Direito material se aplicam a qualquer evento nela previsto a partir de sua promulgação, sem retroagir. Portanto, tornam-se aplicáveis a partir de 22 de outubro. “Dessa forma, as sociedades cujos contratos sociais não prevejam quóruns específicos estarão sujeitas ao quórum de deliberação legal vigente no momento da referida deliberação e/ou votação.”

Contrato social

No entanto, muito se discutirá a partir do dia 22 sobre os contratos que copiaram o texto da lei anterior. As sociedades que se interessarem em adaptar seus contratos sociais à nova legislação deverão se reunir e votar pela reforma do documento, objetivando a redução dos quóruns previstos ou a sua remoção, com simples remessa à lei vigente. “Essa votação, no entanto, poderá ser delicada porque esbarrará em interesses já postos na sociedade, relacionados ao percentual de participação de cada sócio, que estará obrigada a respeitar o quórum previsto”, prevê Mariana Nogueira.

Assim, a nomeação de um administrador não sócio — artigo 1.061 do Código Civil — dependerá da aprovação de pelo menos dois terços dos sócios enquanto o capital não estiver integralizado. E dependerá da maioria simples após a integralização. Atualmente, é exigida a aprovação pela unanimidade dos sócios e de pelo menos dois terços deles após a integralização do capital, respectivamente.

“Entendemos a mudança legislativa do quórum geral para sociedades limitadas como bem-vinda, na medida em que, ao privilegiar o princípio majoritário, outorga maior liberdade na acomodação de interesses dos sócios de sociedades limitadas — as quais, caso queiram, poderão adotar, sem óbices, o regime anterior”, afirma Eduardo Ribas.

Por outro lado, a ausência de modulação ou de regras de transição para sociedades baseadas na regra atualmente vigente e a vacatio legis de apenas 30 dias deverão gerar discussões até então inesperadas entre sócios, visto que será alterada abruptamente a dinâmica do poder de controle.

A prática societária nas sociedades limitadas foi consolidada em torno do quórum de 75%, fixado em uma lei (a atual) na qual não era facultada aos sócios a minoração. “Era usual, mas não necessário, que fosse fixado no contrato social, mais por razões de forma do que jurídicas, que o quórum de alteração do contrato fosse expressamente indicado em 75%. Não raro, todavia, apenas remetia-se (ou simplesmente não se apontava no contrato essa disposição) ao regramento legal — na segurança de que, uma vez positivada em lei, a relação estaria segura ao longo do tempo. Era comum, por exemplo, escolher o regime das sociedades limitadas para garantir ao sócio ou ao grupo minoritário, titular de 25% da participação social, poder de veto nas deliberações atinentes à alteração do contrato social. Com a mudança, além da diminuição do custo do controle — já que será controlador aquele com metade mais um da participação social —, retirar-se-á dos minoritários um poder de veto antes constituído em torno da regra de quórum legal”, aponta Ribas.

Para contornar essas situações, avaliam os especialistas, as sociedades deverão instituir uma nova fórmula para o quórum, mediante alteração do contrato social. A boa notícia consiste na faculdade de fixação de um quórum intermediário (de 60%, por exemplo), com a margem concedida pela lei.

Correção de distorção

Para Pedro Chagas, a lei de 2002 promoveu o engessamento das sociedades limitadas. “Agora, está sendo corrigido esse equívoco do Código Civil. Mas a alteração vai demandar dos cotistas muita atenção para se fazer os ajustes necessários no contrato social”, explica o advogado, lembrando que a grande maioria das empresas familiares brasileiras e microempresas usa esse tipo de sociedade em seus contratos sociais.

Dados do Ministério da Economia apontam a existência hoje de 3,2 milhões de microempresas ativas e 745 mil empresas de pequeno porte em atividade, além de 852 mil de outros tipos, mas dentro do espectro de sociedades limitadas.

As sociedades que reproduziram expressamente os quóruns previstos na legislação anterior no texto do contrato social, segundo Ribas, estão protegidas da mudança operada na lei, não havendo necessidade de alterações no contrato social. Isso porque a nova regra, do quórum mínimo de 50%, permite que números superiores sejam fixados.

“Assim, devem se adaptar os contratos sociais das sociedades que simplesmente referenciavam que seriam aplicáveis as regras do Código Civil, ou que silenciaram sobre o tema. Nesses casos, para adaptação à nova legislação — que não precisa ser integral para redução ao quórum de simples maioria, já que é possível fixar quóruns intermediários —, deverão os sócios se reunir e deliberar pela alteração do contrato social da sociedade, para a alteração ou retirada da regra de quórum antes vigente”, explica ele.

Pedro Chagas prevê, inclusive, que nos próximos anos o Judiciário poderá tomar decisões equivocadas sobre o assunto, em detrimento da alteração da legislação. Contudo, destaca o advogado, “o Judiciário brasileiro é de alto nível e vai corrigir” possíveis equívocos e interpretações destoantes. “A Lei 14.451/22 mexe com quase todos os que têm empresa no Brasil”, conclui.

 

Fonte: CONJUR